Decisão do TCU fixa balizas para a definição de erro grosseiro na Gestão Pública

O Plenário do Tribunal de Contas da União proferiu o Acórdão nº 2.391, em 17/10/2018, sob a Relatoria do Ministro Benjamin Zymler, que estabeleceu balizas importantes e controversas sobre a responsabilidade dos agentes públicos diante da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB). O Tribunal debruçou-se, especialmente, sobre o artigo 28 da LINDB, cujo teor prescreve que “o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”.

O caso, como relatado no Acórdão, diz respeito à contratação, por parte da FUNASA, dos serviços de transporte executivo, com motoristas, para diretores e outros agentes da autarquia. O Contrato previa um valor de remuneração fixo e outro variável, de acordo com a quilometragem rodada. O agente da FUNASA que utilizasse o transporte deveria, ao final de cada viagem, firmar documento indicando o trajeto e a quilometragem rodada, que serviria de base para a medição e pagamento. Ocorre que os agentes da FUNASA não assinaram tal documento e não houve nenhum outro tipo de controle que pudesse justificar os pagamentos realizados, por efeito do que o Tribunal de Contas da União entendeu que houve superfaturamento. Aliás, a tese de superfaturamento foi reforçada pelo fato de que os pagamentos indicavam quilometragem rodada superior à média histórica registrada pela autarquia.

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A principal acusação recaiu sobre o Coordenador de Logística da FUNASA. O julgamento apoiou-se em depoimentos colhidos em processo interno da autarquia, cujos conteúdos revelariam que o Coordenador teria determinado que os controles não fossem realizados, justamente com a intenção de gerar o superfaturamento. Essa questão é central, pisada e repisada no Acórdão. No entanto, o tal depoimento não foi transcrito no Acórdão – pelo menos não foi transcrito depoimento que fosse assertivo nesse sentido. O Coordenador nega que tenha dado tal orientação.

Pois bem, os ministros consideraram que o Coordenador de Logística determinou que não fossem realizados os controles e, por consequência, deu causa ao superfaturamento.  Por essa razão, condenaram o Coordenador de Logística, sob o fundamento de que ele teria cometido erro grosseiro, na forma do artigo 28 da LINDB.

Daí a primeira crítica ao Acórdão. Se as premissas factuais indicadas pelo Tribunal de Contas da União estão certas, seria o caso de dolo e não de erro grosseiro. O Coordenador de Logística, na exposição do Acórdão, teria atuado com a intenção de impedir o controle e gerar superfaturamento.

Na verdade, os ministros foram contraditórios. É que o Coordenador de Logística defendeu-se, negou os fatos que lhe foram imputados e que tivesse agido com dolo. Os ministros, em vez de bancarem a tese do dolo, tergiversaram, sustentaram que a responsabilidade do Coordenador de Logística não dependeria de dolo ou de má-fé, que bastaria a culpa. Com suporte na LINDB, enquadraram a conduta em erro grosseiro.

Contudo, mais à frente, disseram que o erro grosseiro ocorreu porque o Coordenador de Logística, “no alto de sua posição hierárquica, orientou os fiscais a atuarem em desacordo com os termos do contrato, possibilitando o uso dos veículos locados sem o mínimo de controle”. Em suma, o fato que qualificou o erro grosseiro, se ocorreu, desenha claramente dolo.

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O Tribunal de Contas da União passou a tecer considerações sobre o erro grosseiro. Nesse particular, os ministros merecem elogios, o Acórdão representa avanço importante na jurisprudência da Corte. É que até então o Tribunal de Contas da União tratava do erro grosseiro sem amparo em baliza conceitual, sem explicar minimamente o seu significado (confira-se, por exemplo, o Acórdão n. 2.504/2016, Plenário, o Acórdão n. 1.628/2018, Plenário, e o Acórdão n. 362/2018, Plenário).  A grande virtude do Acórdão foi a de explicar, definir as balizas conceituais sobre o erro grosseiro. É conveniente transcrever:

82. Dito isso, é preciso conceituar o que vem a ser erro grosseiro para o exercício do poder sancionatório desta Corte de Contas. Segundo o art. 138 do Código Civil, o erro, sem nenhum tipo de qualificação quanto à sua gravidade, é aquele“que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do negócio”(grifos acrescidos). Se ele for substancial, nos termos do art. 139, torna anulável o negócio jurídico. Se não, pode ser convalidado.

83. Tomando como base esse parâmetro, o erro leve é o que somente seria percebido e, portanto, evitado por pessoa de diligência extraordinária, isto é, com grau de atenção acima do normal, consideradas as circunstâncias do negócio. O erro grosseiro, por sua vez, é o que poderia ser percebido por pessoa com diligência abaixo do normal, ou seja, que seria evitado por pessoa com nível de atenção aquém do ordinário, consideradas as circunstâncias do negócio. Dito de outra forma, o erro grosseiro é o que decorreu de uma grave inobservância de um dever de cuidado, isto é, que foi praticado com culpa grave.

O Acórdão oferece até uma tabela ilustrativa:

Gradação do Erro Pessoa que seria capaz de perceber o erro Efeito sobre a validade do negócio jurídico (se substancial) 
Erro grosseiro Com diligência abaixo do normal Anulável
Erro (sem qualificação) Com diligência normal Anulável
Erro leve Com diligência extraordinária – acima do normal Não anulável

A associação do erro grosseiro à culpa grave é acertada. O Ministro Relator ainda houve por bem de salientá-la com os apontamentos de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, bem como com a doutrina clássica de Pontes de Miranda. Confira-se:

84. Segundo Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, “culpa grave é caracterizada por uma conduta em que há uma imprudência ou imperícia extraordinária e inescusável, que consiste na omissão de um grau mínimo e elementar de diligência que todos observam”(FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. São Paulo: Atlas, p. 169)

85. Os aludidos autores invocaram a doutrina de Pontes de Miranda, segundo a qual a culpa grave é “a culpa crassa, magna, nímia, que tanto pode haver no ato positivo como no negativo, a culpa que denuncia descaso, temeridade, falta de cuidados indispensáveis”. (PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, t. XXIII. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971. p. 72)

Como dito, o Acórdão representa avanço.  Pelo menos, a partir dele, encontra-se referencial conceitual sobre a categoria erro grosseiro. O Tribunal de Contas da União precisa dar novos passos, especialmente na direção de aprimorar a motivação de suas decisões no tocante às análises de gradação de culpabilidade, talvez fixando algum tipo de parâmetro mais objetivo, em prol da segurança jurídica.

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O Diretor da FUNASA, superior hierárquico ao Coordenador de Logística, também foi condenado, nada obstante o Tribunal de Contas da União ter reconhecido que ele não agiu com dolo ou erro grosseiro (culpa grave). Os ministros concluíram que ele não participou da fiscalização do contrato, não orientou os fiscais a serem lenientes e apenas atuou no processo de pagamento. Todavia, por ter autorizado o pagamento, ainda que sem culpa grave, foi condenado a indenizar o montante superfaturado relativo ao tal pagamento.

Esse é outro ponto relevante do Acórdão. Insista-se que o agente público deve ser responsável por atos dolosos e pelos praticados com erro grosseiro, o que remete à culpa grave, em alinho ao artigo 28 da LINDB. No caso, os ministros admitiram que o Diretor não agiu com dolo e que não cometeu erro grosseiro. Por conseguinte, em cumprimento ao artigo 28 da LINDB, ele não deveria ter sido responsabilizado por coisa alguma, inclusive não deveria ser obrigado a indenizar eventual prejuízo causado à FUNASA.

A interpretação do Tribunal de Contas da União foi diferente. É melhor reproduzi-la:

145. Sendo assim, compreendo que as circunstâncias específicas relativas à culpabilidade do Sr. [XXX] impõem um tratamento distinto do responsável quanto à sua punibilidade. Porém, entendo que tais aspectos não alteram a sua responsabilidade pelo débito.

146. Isso ocorre porque as alterações promovidas na LINDB, em especial no art. 28, não provocaram uma modificação nos requisitos necessários para a responsabilidade financeira por débito.

147. O dever de indenizar os prejuízos ao erário permanece sujeito à comprovação de dolo ou culpa, sem qualquer gradação, como é de praxe no âmbito da responsabilidade aquiliana, inclusive para fins de regresso à administração pública, nos termos do art. 37, § 6º, da Constituição:

“6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa” (grifos acrescidos).

148. Como regra, a legislação civil não faz nenhuma distinção entre os graus de culpa para fins de reparação do dano. Tenha o agente atuado com culpa grave, leve ou levíssima, existirá a obrigação de indenizar. A única exceção se dá quando houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano. Nesta hipótese, o juiz poderá reduzir, equitativamente, a indenização, nos termos do art. 944, parágrafo único, do Código Civil.

149. No presente caso, compreendo que o responsável agiu com culpa na consumação da irregularidade, não havendo nenhuma desproporcionalidade entre o seu grau de negligência, verificado no cometimento do ato inquinado, e o dano que causou ao erário.

150. Sendo assim, compreendo que o Sr. [XXX] deve ser condenado em débito, mas, diante da ausência de culpa grave, deve ser dispensado da aplicação da multa.

O Tribunal de Contas da União definiu que a LINDB, quando condiciona a responsabilidade de agente público ao dolo ou ao erro grosseiro, limita-se à aplicação de sanções, como multa, inabilitação para ocupar cargos, etc. O condicionamento ao dolo ou ao erro grosseiro não abrangeria a indenização de prejuízos eventualmente causados pelo agente público. É que o § 6º do artigo 37 da Constituição Federal, na ótica da Corte, teria previsto a responsabilidade pela indenização diante do dolo ou da culpa, esta sem qualquer gradação, não sendo necessária culpa grave, caracterizadora do erro grosseiro. Ou seja, por imposição constitucional, a culpa leve ou média não eximiria o agente da obrigação de indenizar o dano eventualmente causado, eximiria apenas as sanções.

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O raciocínio do Tribunal de Contas da União está equivocado. São três os argumentos que se prestam a refutá-lo.

O § 6º do artigo 37 da Constituição Federal refere-se à indenização nos casos de dolo ou culpa, realmente, sem qualquer gradação. Entretanto, aqui está o primeiro argumento, nada impede que o legislador infraconstitucional discipline o assunto e estabeleça balizas e condicionantes, definindo graus de culpa para efeito da obrigação de indenização por parte de agentes públicos, como bem observou o Professor Clovis Beznos, em Conferência proferida no XV Congresso Goiano de Direito Administrativo. O constituinte não proibiu o legislador infraconstitucional de fazê-lo. E, de mais a mais, o condicionamento de normas constitucionais pelo legislador infraconstitucional é algo absolutamente frequente e não representa afronta ao texto constitucional.

Veja-se, por exemplo, que o inciso I do artigo 143 e o artigo 181, ambos do Código de Processo Civil, prescrevem que magistrados e membros do Ministério Público somente podem ser responsabilizados por perdas e danos se procedem com dolo ou fraude. Para os ministros do Tribunal de Contas da União aplica-se a mesma regra, em vista do artigo 73 da Lei Orgânica da Corte, cuja redação reconhece a eles as garantias e prerrogativas dos ministros do Superior Tribunal de Justiça.

Ninguém discute, especialmente magistrados, membros do Ministério Público e ministros do Tribunal de Contas da União, que é permitido ao legislador infraconstitucional restringir as suas responsabilidades por perdas e danos, inclusive afastando a possibilidade de responderem por conduta meramente culposa, ainda que por culpa grave.

Por coerência, utilizando a mesma régua, também deveriam prestigiar a constitucionalidade do artigo 28 da LINDB no tocante aos demais agentes públicos, sem reduzir o alcance do dispositivo às sanções e retirar da incidência dele a responsabilidade por perdas e danos. O legislador, no artigo 28 da LINDB, tratou da responsabilidade dos agentes públicos de forma ampla, sem qualquer restrição. Não cabe ao Tribunal de Contas da União fabular restrições não supostas pelo legislador.

O segundo argumento parte da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que propugna a incompetência do Tribunal de Contas da União para realizar controle de constitucionalidade. O entendimento é de que tal competência é reservada ao Poder Judiciário, por obséquio ao princípio da separação de poderes (Confira-se STF, MCMS 35.410/DF, Rel. Min. Alexandre Moraes, em 15/12/2017).

No Acórdão, o Tribunal de Contas da União tratou da constitucionalidade do artigo 28 da LINDB. Fez uma espécie de interpretação conforme a Constituição, porque restringiu o alcance literal e mais amplo do dispositivo, defendendo que ele ofenderia o § 6º do artigo 37 da Constituição Federal.

Não custa lembrar da advertência do Ministro Luís Roberto Barroso de que “a interpretação conforme a Constituição não é mero preceito hermenêutico, mas, também, um mecanismo de controle de constitucionalidade pelo qual se declara ilegítima uma determinada leitura da norma legal” (BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 175). Também pensa assim Gerson dos Santos Sicca, para quem a interpretação conforme a Constituição exige que “seja concebida como um mecanismo de controle de constitucionalidade, devido ao fato de o julgador declarar em qual sentido a norma é constitucional, excluindo as demais possibilidades de interpretação” (DOBROWOLSKY, Silvio (Org.) A Constituição no Mundo Globalizado. Florianópolis: Diploma Legal, 2000. p. 106).

Portanto, o Tribunal de Contas da União, ao restringir o alcance do texto do artigo 28 da LINDB sob a escusa de conformá-lo ao § 6º do artigo 37 da Constituição Federal, empreendeu verdadeiro controle de constitucionalidade, o que desborda da sua competência constitucional, em desalinho a decisões reiteradas do Supremo Tribunal Federal.

O terceiro argumento, que me foi apresentado pelo Professor Luciano Ferraz, é que o § 6º do artigo 37 da Constituição Federal dedica-se aos danos causados pelos agentes públicos a terceiros (externos) e não aos danos causados pelos agentes públicos à própria Administração Pública (internos). O texto é categórico: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros […].” (Grifo acrescido).

O Acórdão do Tribunal de Contas da União ocupa-se de dano pretensamente causado por agentes da FUNASA à própria FUNASA. Logo, não divisa dano causado a terceiro, o que repele o § 6º do artigo 37 da Constituição Federal.

Dessa sorte, o § 6º do artigo 37 da Constituição Federal, como não incide sobre os danos causados ao próprio Poder Público, não poderia ter sido aplicado ao caso em comento, em que, diga-se novamente, o dano teria sido causado à FUNASA. O dispositivo constitucional não poderia servir de fundamento para desfazer a condicionante da responsabilidade em dimensão ampla, inclusive por perdas e danos, apenas aos casos de dolo ou de erro grosseiro, como preceituado no artigo 28 da LINDB.

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O Ministro Relator propôs a condenação do Coordenador de Logística e de outros três agentes da FUNASA que teriam autorizado o pagamento dos serviços. Um deles era o Diretor, a quem não foi atribuída culpa grave, como já salientado. A empresa contratada também foi condenada. Na motivação do Acórdão ficou bem posta a culpabilidade de todos, mas não a justificativa para a configuração de culpa grave (à exceção do Diretor), sobremaneira em consonância com as balizas conceituais fixadas anteriormente.

Na parte conclusiva do Acórdão, os ministros fizeram uma distinção incomum, que apareceu de surpresa, pode-se dizer. Eles reconheceram a culpa grave dos condenados (à exceção do Diretor) e, dentro da culpa grave, estabeleceram uma espécie de subgradação. Assim, ao Coordenador de Logística foi atribuída culpa grave/grave, ao segundo agente culpa grave/média, ao terceiro culpa grave/leve e à empresa contratada culpa grave/leve. O Acórdão não se preocupou em definir os critérios e balizas para tal subgradação, o que torna difícil a sua intelecção.

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O Ministro André de Carvalho fez declaração de voto, passando a falar de dolo. De certa forma, atenuou a responsabilidade da empresa contratada e apontou que os diretores da FUNASA teriam assentido com o ocorrido, uma vez que utilizaram os veículos e não fizeram os devidos registros. Propôs que todos eles fossem citados para apresentar suas defesas.

O Acórdão acabou condenando os envolvidos ao pagamento de indenização e multa, com gradação e subgradação, consoante o Voto do Relator. Um dos acusados, o Diretor, não foi condenado em multa, apenas à indenização, porque se considerou que ele não agiu com culpa grave. Os ministros determinaram a apuração de responsabilidade dos demais dirigentes, como proposto na declaração de voto do Ministro André de Carvalho. O Coordenador de Logística ainda foi condenado à inabilitação para o exercício de cargo em comissão ou função de confiança pelo prazo de 5 (cinco) anos.

Processo relacionado: Acórdão nº 2.391 – Plenário.

Fonte: Blog Zênite
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