Uma dúvida que tem surgido refere-se à possibilidade de a Administração celebrar contratos de serviços contínuos, por exemplo, pelos próximos meses, em razão da previsão contida no art. 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal:
“Art. 42. É vedado ao titular de Poder ou órgão referido no art. 20, nos últimos dois quadrimestres do seu mandato, contrair obrigação de despesa que não possa ser cumprida integralmente dentro dele, ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte sem que haja suficiente disponibilidade de caixa para este efeito.
Parágrafo único. Na determinação da disponibilidade de caixa serão considerados os encargos e despesas compromissadas a pagar até o final do exercício.”
Desse dispositivo não se depreende uma vedação absoluta à assunção de despesas no final do mandato, mas impõe à autoridade competente que assegure a disponibilidade de caixa para honrar os compromissos assumidos a partir de 1º de maio do último ano do mandato.
Tal dispositivo visa resguardar o novo Governo da possibilidade de assumir o mandato com dívidas da gestão anterior, sem a existência de recursos para sua liquidação e posterior pagamento, evitando, assim, a figura do déficit financeiro e herança fiscal.
Assim, é vedado ao Poder Público contrair obrigações que não possuam cobertura no orçamento respectivo, que não tenham disponibilidade de caixa para saldá-las.
Isso não significa vedação à realização de quaisquer licitações e/ou contratações cuja execução se dará no exercício financeiro vigente ou no seguinte, ainda mais quando se tratar de serviços de natureza contínua, que, por serem necessários ao regular exercício das atividades públicas, não podem sofrer interrupção em sua prestação.
Tal assertiva é reforçada diante da compreensão de que os contratos de serviços contínuos implicam na assunção de despesas que se sujeitam ao regime de competência previsto no art. 35, inc. II, da Lei nº 4.320/64. Então, a despesa gerada com a contratação continuada e verificada no exercício futuro deverá correr à conta do respectivo ano orçamentário, não sendo verificado o efeito danoso da denominada herança fiscal.
Diante disso, se a contratação de caráter continuado for celebrada ainda em 2020, por exemplo, com prazo de vigência que adentre ao próximo ano (2021), então, as despesas relacionadas ao presente exercício serão custeadas com recursos do orçamento atual, sendo que aquelas pertinentes ao ano seguinte serão suportadas com os recursos do próximo orçamento.
Por consequência, a regra é que, para as despesas assumidas neste exercício, deve a Administração assegurar que haja a correspondente disponibilidade de caixa para o seu custeio.
Diz-se que esta é a regra porque, para viabilizar que a Administração disponha de recursos para o enfrentamento da crise decorrente da pandemia COVID-19, normas de cunho orçamentário vem sendo editadas e orientações dos órgãos de controle vem sendo expedidas.
A partir da interpretação conferida pelo Supremo Tribunal Federal à Emenda Constitucional nº 106 (Vide https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/05/14/supremo-confirma-que-lrf-nao-pode-restringir-combate-ao-coronavirus), as condições imprevisíveis e urgentes que afetam a possibilidade de execução do orçamento planejado tornam justificável o afastamento dos artigos 14, 16, 17 e 24 da LRF, para os Municípios que declararam estado de calamidade pública durante o período que durar a crise.
Especificamente sobre o art. 42 da LRF, a Lei Complementar nº 173/2020 promoveu a seguinte alteração no art. 65 daquele diploma:
“Art. 65. Na ocorrência de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional, no caso da União, ou pelas Assembléias Legislativas, na hipótese dos Estados e Municípios, enquanto perdurar a situação:
(…)
§ 1º Na ocorrência de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional, nos termos de decreto legislativo, em parte ou na integralidade do território nacional e enquanto perdurar a situação, além do previsto nos inciso I e II do caput:
(…)
II – serão dispensados os limites e afastadas as vedações e sanções previstas e decorrentes dos arts. 35, 37 e 42, bem como será dispensado o cumprimento do disposto no parágrafo único do art. 8º desta Lei Complementar, desde que os recursos arrecadados sejam destinados ao combate à calamidade pública;
III – serão afastadas as condições e as vedações previstas nos arts. 14, 16 e 17 desta Lei Complementar, desde que o incentivo ou benefício e a criação ou o aumento da despesa sejam destinados ao combate à calamidade pública.” (Destacamos.)
Portanto, para as despesas relacionadas ao enfrentamento da crise provocada pela pandemia COVID-19, a Administração Pública poderá afastar o regramento constante do art. 42, celebrando ajustes para os quais não haja disponibilidade orçamentária imediata.
Contudo, frise-se, não parece que a alteração promovida pela LC nº 173 tenha o condão de autorizar a celebração de quaisquer contratos sem que haja recursos disponíveis para fazer frentes às despesas que serão realizadas no exercício presente.
Tal diretriz foi apresentada pelo Ministério da Economia por meio da Nota Técnica SEI nº 21231/2020/ME:
“46. As alterações introduzidas no art. 65 da LRF afastam também as vedações e sanções relacionadas aos itens e condições a seguir:
(…)
Exigência de disponibilidade de caixa para cobrir as obrigações contraídas nos dois últimos quadrimestres do mandato do titular do Poder ou órgão (exigência prevista no art. 42 da LRF), desde que essas obrigações sejam referentes ao combate à calamidade pública;” (Destacamos.)
Portanto, o art. 42 da LRF não obsta a realização de licitações e celebração de contratos nos últimos dois quadrimestres do mandato, mas sim a assunção de despesas para as quais não haja disponibilidade de caixa.
Como as contratações de natureza contínua submetem-se ao regime de competência, em que as despesas são custeadas com base no orçamento do exercício em que são efetivadas, tem-se que o atendimento do art. 42 da LRF exige que a Administração disponha de recursos neste ano para fazer frente às despesas que serão realizadas ainda em 2020 no âmbito do contrato de serviços contínuos pretendido.
Interessante observar que o fato de a Administração estar diante de um cenário extraordinário, marcado pela queda de arrecadação decorrente das medidas de enfrentamento à crise provocada pela pandemia COVID-19, não afasta o dever de garantir os recursos necessários para custear quaisquer despesas que forem efetivadas em 2020.
A partir da LC nº 173, que promoveu alterações na LRF, somente poderá ser afastada a regra do art. 42 quando se tratar de contratação pertinente ao enfrentamento da crise.