O efeito devolutivo da apelação não está adstrito à revisão dos fatos e das provas dos autos, mas especialmente das consequências jurídicas que lhes atribuiu a sentença. Portanto, não apenas as matérias de ordem pública podem ser suscitadas por réu revel em sua apelação, mas todo e qualquer argumento jurídico que possa alterar o resultado do julgamento.
Com esse entendimento e por maioria de votos, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça anulou um acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo em que os desembargadores se recusaram a analisar, em apelação, os argumentos deduzidos por uma empresa condenada em primeiro grau como revel.
O caso envolve três contratos de compra e venda de soja entre agrícolas. Uma das empresas ajuizou a ação porque a outra descumpriu os instrumentos. Assim, pediu a aplicação da multa prevista, além de pagamento do prêmio, calculado por saca de 60 kg.
Como a ré foi decretada revel, o juiz de primeiro grau presumiu como verdadeiros os fatos alegados na petição inicial e, após exame do conjunto das alegações e das provas produzidas, condenou-a ao pagamento.
Ao TJ-SP, a empresa ré defendeu que o contrato não contém cláusula penal para o caso de desistência da compra — no caso, a não retirada do produto cuja aquisição foi contratada. A multa incidiria apenas se houvesse a falta de pagamento ou a não entrega do produto.
Tanto na apelação como nos embargos de declaração, o TJ-SP se recusou a analisar os pontos por entender que a recorrente não poderia trazer novas insurgências, que não foram sequer analisadas pelo juízo de piso.
Com base no voto divergente do ministro Antonio Carlos Ferreira, a 4ª Turma reformou o acórdão. Formaram maioria com ele os ministros Raul Araújo e Maria Isabel Gallotti. Não participou do julgamento o ministro Marco Buzzi.
Direito de defesa
Segundo o voto vencedor, as teses deduzidas na apelação da empresa configuram o legítimo exercício do direito de defesa. A impugnação trata da fundamentação usada para justificar a condenação: o uso dos princípios da boa-fé, da função social do contrato e da equivalência para, em interpretação extensiva, condenar ao pagamento de multa que a ré afirmar ser inaplicável.
A controvérsia, portanto, tem enfoque eminentemente jurídico. Assim, a presunção de veracidade sobre os fatos não impede que o réu revel possa discutir suas consequências jurídicas.
“A devolutividade da apelação não está adstrita à revisão dos fatos e das provas dos autos, mas, especialmente, sobre as consequências jurídicas que lhes atribuiu o juízo a quo. Portanto, não apenas as matérias de ordem pública podem ser agitadas pelo réu revel em sua apelação, mas todo e qualquer argumento jurídico que possa alterar o resultado do julgamento”, disse o ministro Antonio Carlos Ferreira.
Substitutivo da contestação
Ficou vencido o relator, ministro Luís Felipe Salomão, para quem o TJ-SP agiu bem ao vedar discussões que não ocorreram em primeiro grau devido à revelia da empresa ré.
Isso porque a matéria levantada em apelação é própria de contestação e caracteriza defesa extemporânea, o que subverte a sistemática processual, devendo ser rigorosamente repudiada, apontou o relator.
“Induvidosamente, não é possível inaugurar argumentos em apelação, sem o prévio juízo cognitivo da instância primeva, sob pena de supressão de instância”, disse. “Em outras palavras, ao revel não é dado utilizar a apelação como substitutivo da contestação, até porque é impossível uma cumprir o escopo da outra”, acrescentou.
Portanto, apenas questões de ordem pública ou supervenientes poderiam ser deduzidas no momento oportuno, não sendo possível ao réu revel inovar no recurso de apelação, justamente pela ausência do caráter de substituto da contestação.
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REsp 1.848.104