A prerrogativa de foro para julgamento de crimes praticados no cargo e em razão das funções subsiste mesmo após o afastamento do cargo, decide STF

Tese fixada:

“A prerrogativa de foro para julgamento de crimes praticados no cargo e em razão das funções subsiste mesmo após o afastamento do cargo, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados depois de cessado seu exercício.”

Resumo:

O STF fixou posição mais abrangente sobre a competência dos tribunais para julgar os crimes funcionais praticados por autoridades com prerrogativa de foro (“foro privilegiado”), no sentido de mantê-la mesmo após o término do exercício das respectivas funções. Aprimorou-se a orientação vigente com o intuito de assegurar a imparcialidade, a independência do julgamento e inibir os deslocamentos que resultam em lentidão, ineficiência e até mesmo prescrição das ações penais.

O ordenamento jurídico prevê o foro especial por prerrogativa de função (CF/1988, art. 102, I, “b”) para proteger o exercício de cargos ou funções estatais de alta relevância constitucional contra ameaças do próprio acusado, manter a estabilidade das instituições democráticas, preservar o funcionamento do Estado e assegurar um julgamento menos suscetível a influências externas. Essa prerrogativa assegura que determinadas autoridades sejam julgadas por órgãos colegiados de maior hierarquia do Poder Judiciário. Portanto, o foro especial não constitui um privilégio pessoal, mas uma garantia para o adequado exercício das funções públicas.

No que concerne à problemática do momento de encerramento do direito ao foro privilegiado, a jurisprudência desta Corte oscilou ao definir a sua extensão, ora pela natureza do delito (regra da contemporaneidade e da pertinência temática), ora pelo exercício atual de funções públicas (regra da atualidade), o que gerou uma indefinição quanto à abrangência do instituto.

Com o cancelamento da Súmula 394/STF – no julgamento da Questão de Ordem no Inquérito nº 687/SP -, esta Corte realizou uma redução teleológica do foro privilegiado ao limitar sua aplicabilidade, de modo que o foro especial não se manteria após a perda do mandato, mesmo na hipótese de crimes cometidos durante o exercício das funções.

Posteriormente, na Questão de Ordem na Ação Penal nº 937/RJ (4), o Tribunal entendeu que o referido foro se aplicaria apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas. Assim, com exceção das ações cuja fase da instrução processual esteja concluída — hipótese de manutenção da competência, inclusive nos casos de infrações penais não relacionadas ao cargo ou à função exercida — a cessação do exercício das funções ensejaria o declínio da competência para o Juízo de primeiro grau.

Nesse contexto, nas hipóteses de crimes funcionais, a imposição da remessa dos autos para a primeira instância com o término do exercício funcional subverte a finalidade do foro por prerrogativa de função. Isso ocorre porque, além de ser contraproducente ao causar flutuações de competência (“sobe e desce”) no decorrer das causas criminais e trazer instabilidade ao sistema de Justiça, permite a alteração da competência absoluta ratione personae ou ratione funcionae por ato voluntário do agente público acusado, ao renunciar ao mandato ou à função antes do final da instrução processual.

Na espécie, esta Corte firmou a perpetuação da competência para o julgamento de crimes funcionais com base em uma interpretação mais ampla do foro especial, centrada na natureza do crime praticado pelo agente, em vez de critérios temporais relacionados à permanência no cargo ou ao exercício atual do mandato, que podem ser manipulados pelo acusado. Ademais, a saída do cargo somente afasta o foro privativo na hipótese de crimes perpetrados antes da investidura no cargo ou que não possuam relação com o seu exercício.

Com base nesses e em outros entendimentos, o Plenário, por maioria, concedeu a ordem de habeas corpus para (i) assentar a competência do Supremo Tribunal Federal para processar e julgar a ação penal nº 1033998-13.2020.4.01.3900; e (ii) fixar a tese anteriormente mencionada, com o entendimento de que essa nova linha interpretativa deve aplicar-se imediatamente aos processos em curso, ressalvados todos os atos praticados e decisões proferidas pelo STF e pelos demais Juízos com base na jurisprudência anterior, conforme precedentes firmados no QO no INQ 687 e na QO na AP 937.

Processo relacionado: HC 232.627/DF, relator Ministro Gilmar Mendes

NOTA DO ESCRITÓRIO

Sobre o tema, soma-se o acórdão abaixo:

Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PRERROGATIVA DE FORO. ALCANCE RESTRITO. INVESTIGAÇÃO DE CRIMES PRATICADOS ANTES DO MANDATO. INEXISTÊNCIA DE COMPETÊNCIA DO TJGO PARA SUPERVISIONAR INQUÉRITO. AGRAVO PROVIDO.
I. CASO EM EXAME
1. Habeas corpus impetrado em favor de Vilmar Mariano da Silva, investigado no Inquérito Policial nº 10/2022, instaurado pela Polícia Civil de Goiás para apurar suposta fraude em licitação (Concorrência Pública nº 001/2018) relacionada à construção do prédio da Câmara Municipal de Aparecida de Goiânia/GO, com execução entre 2018 e 2022. O paciente exercia, à época, a presidência da Câmara e, a partir de 31/3/2022, o cargo de Prefeito Municipal. O Ministro Relator concedeu liminar para anular diligências investigativas feitas sem supervisão do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO), decisão da qual divergiu o voto vencedor.
II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO
2. Há duas questões em discussão: (i) definir se os fatos investigados atraem a competência do TJGO por prerrogativa de foro em razão do atual cargo de Prefeito Municipal; (ii) estabelecer se a ausência de autorização e supervisão judicial pelo TJGO invalida os atos investigativos do inquérito.
III. RAZÕES DE DECIDIR
3. A prerrogativa de foro aplica-se apenas a delitos praticados no exercício e em razão do cargo, conforme entendimento firmado no julgamento da AP 937 QO pelo STF.
4. Não há prorrogação da competência por prerrogativa de foro quando os fatos ocorreram antes da assunção do novo cargo e não guardam relação com suas funções.
5. A ausência de competência do TJGO afasta a necessidade de supervisão, não havendo vícios quanto aos atos do inquérito conduzido diretamente pela autoridade policial.
IV. DISPOSITIVO E TESE
7. Agravo provido.
Tese de julgamento: 1. A competência por prerrogativa de foro restringe-se a delitos cometidos no exercício e em razão do cargo, não alcançando fatos anteriores à investidura. 2. A inexistência de competência do tribunal de segundo grau afasta a exigência de autorização e supervisão judicial sobre atos investigativos praticados pela polícia.
Dispositivos relevantes citados: CF/1988, arts. 102, I, b e c; 105, I, a; 108, I, a; 29, X. Jurisprudência relevante citada: STF, AP 937 QO, Rel. Min. Roberto Barroso, j. 3.5.2018; STF, HC 232.627. (STF – HC 241474 AgR-segundo, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Relator(a) p/ Acórdão: EDSON FACHIN, Segunda Turma, julgado em 07.04.2025, DJe-s/n 07.05.2025)

Fonte: Supremo Tribunal FederalAutor: Informativo nº 1168
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