Ao interpretar uma mudança introduzida pelo Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019), a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) não conheceu de habeas corpus que buscava a aplicação retroativa da regra do parágrafo 5º do artigo 171 do Código Penal para anular o processo que resultou na condenação de um vendedor pelo crime de estelionato.
Para o colegiado, a regra – que exige a representação da vítima como pré-requisito para a ação penal por estelionato – não pode ser aplicada retroativamente para beneficiar o réu nos processos em curso, pois isso não foi previsto pelo legislador ao alterar a redação do artigo 171 no Pacote Anticrime.
Segundo o ministro Reynaldo Soares da Fonseca, relator, a Lei 13.964/2019 transformou a natureza da ação penal no crime de estelionato, de pública incondicionada para pública condicionada à representação do ofendido (salvo algumas exceções) – mudança que só pode afetar os processos ainda na fase policial.
De outro modo – ressaltou o relator, citando o jurista Rogério Sanches Cunha –, a representação passaria de condição de procedibilidade da ação penal (condição necessária ao início do processo) para condição de prosseguibilidade (condição que deve ser implementada para o processo já em andamento poder seguir seu curso).
Para o ministro, o entendimento mais acertado é o de que a representação da vítima possa ser exigida retroativamente nos casos que estão em fase de inquérito policial, mas não na hipótese de processo penal já instaurado.
Questão nova
No caso analisado pelo colegiado, o réu foi condenado em 2018 por estelionato – condenação mantida pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina no início deste ano, já sob a vigência do Pacote Anticrime.
No habeas corpus, a Defensoria Pública reiterou o pedido de aplicação do parágrafo 5º do artigo 171 para anular o processo, uma vez que seria necessária a representação do ofendido para só então se proceder à ação penal.
Reynaldo Soares da Fonseca afirmou que os tribunais superiores ainda não se manifestaram de forma definitiva sobre o assunto, em razão do pouco tempo de vigência da nova lei.
Ele destacou que, em tese, pelo fato de o instituto da representação criminal ser norma processual mista ou híbrida, a aplicação retroativa seria possível para beneficiar o réu, mas o Pacote Anticrime não trouxe nenhuma disposição expressa sobre essa possibilidade.
Processo relacionado: HC 573093
NOTA DO ESCRITÓRIO
Sobre esse julgado, válido registrar o rápido contraponto do festejado processualista penal, Aury Lopes Jr., em postagem, em 10.06.2020, no FaceBook:
“Em que pese a decisão estar, processualmente errada, alguns pontos importantes:
1. Essa norma é mista (seguindo a classificação tradicional) e evidentemente retroage para beneficiar.
2. Não precisaria expressa previsão para tanto, pois essa é uma regra básica, geral e cogente sobre aplicação da lei processual no tempo. Sem falar que, na perspetiva de sistema penal, é uma norma que amplia a esfera de proteção e constitucionalmente deve retroagir, como explico no meu livro.
3. Que retroage, não há dúvidas, o ponto nevrálgico é: qual o prazo para a representação? 6 meses ou 30 dias? Penso que isso sim poderia estar previsto na nova lei (como ocorreu na Lei 9099/95). No silêncio, penso que segue a regra geral de 6m. Não havendo a representação, extingue-se a punibilidade.
4. Finalmente, não cabe anulação do processo, apenas suspensão para representação ou não. Mas, à luz dos fundamentos do processo penal, errou o STJ com essa decisão. A disposição legal retroage e não precisa de previsão legal, é regra básica da teoria da norma processual penal.”